Depois do epílogo de ‘O livreiro’, um spin-off
- rodrigo6609
- Jun 3, 2024
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Quando a história de um dos ícones do mercado literário teve seu desfecho com a morte de um de seus fundadores, Pedro Herz, e o fechamento de sua última loja na Avenida Paulista há 2 meses após uma longa batalha para sua recuperação judicial, houve um aceno para mais uma edição de uma saga que já percorre 3 gerações.
Com um roteiro repleto de elementos encontrados em best-sellers, a Livraria Cultura ensina em sua própria história o que se deve e o que não se deve fazer com uma empresa familiar.
Prólogo
Eva e Kurt, casal de judeus fugidos da Alemanha nazista em 1939, encontram seu lar no Brasil. Eva, 28 anos, empreendedora visionária, monta um negócio baseado em aluguel de livros e ganha relevância na cidade. O empreendimento prospera e ela abre sua primeira loja em 1947, a Biblioteca Circulante, embrião da Livraria Cultura, enquanto cuida de seus dois filhos, Pedro e Joaquim.
As dificuldades financeiras daquela época moldaram a boa diligência no âmbito familiar e na empresa. Nunca se endividaram para crescer, aplicavam o lucro para o negócio e evitavam ostentar uma vida de consumo exagerado. Pedro, desde cedo, aprendeu com os pais como dirigir um negócio familiar de primeira geração onde se vê formar a cultura da empresa, seus princípios e valores a partir das crenças de seus fundadores.
1969
Eva, com 58 anos, e Pedro, 29, inauguram a Livraria Cultura como sócios da empresa. Inicia-se formalmente a segunda geração da companhia, com Pedro dividindo a direção, porém, seguindo as características da primeira geração, com crescimento controlado e sem expansões. Em paralelo, Pedro cuida de seus dois filhos, Sergio e Fabio.
Em condições diferentes, os netos de Eva não viveram a época de escassez e alta diligência. Foram criados em ambiente favorável financeiramente e amplamente disponível, ainda que sem extravagâncias. E, desde cedo, assim como o pai, ambos conviveram nas instalações da Livraria Cultura absorvendo os preceitos cultivados na empresa.
2001
Pedro, aos 61 anos, apesar de já tocar o dia-a-dia da empresa desde seu início, assume a empresa em definitivo após o falecimento de sua mãe. Seus filhos, com 30 e 28 anos, assumem cargos de liderança sendo a terceira geração da família a entrar na companhia. Porém, as características de gestão se assemelham aos vícios e riscos de uma empresa familiar de segunda geração, quando as decisões ainda são centralizadas no fundador, e sucessão e propriedade são temas prematuros.
É neste período que a empresa inicia seu processo de expansão aliado ao desejo de inovar sempre. A Livraria Cultura foi pioneira em diversos processos logísticos fazendo bom uso de tecnologia e com ótimas negociações com parceiros, fornecedores e na remuneração de seu time de vendas. A empresa prospera com sucesso e alcança ótimos resultados em pouco tempo.
2007
Aos 67 anos, Pedro Herz decide iniciar um processo de sucessão para o primogênito Sergio, de 36 anos. Os filhos já atuam em cargos de alta gestão e a empresa apresenta maturidade suficiente para ser dirigida pela terceira geração da família no curto prazo. Há planos para receber aportes de novos investidores e, até mesmo, abrir o próprio capital. A empresa desenha a estruturação do conselho de administração com seu fundador na presidência, usando as melhores práticas de governança para mitigar possíveis conflitos familiares à frente.
Em 2009, Pedro Herz deixa o posto máximo da empresa para assumir a presidência do conselho de administração que contava com membros do Itaú, Neo Investimentos, Broadspan Capital, entre outros. A empresa recebe a chegada de um sócio externo, Capital Mezanino, e o filho Sergio Herz assume o cargo de CEO da companhia. Neste momento, com a terceira geração da família no comando, a Livraria Cultura entra em um estágio de maturidade que permite alçar grandes voos a partir dos altos investimentos de novos sócios com tomadas de decisão colegiadas.
E, em acordo mútuo entre os familiares, a terceira geração seria a última a dirigir o negócio. Dali pra frente, gestão profissional. A família estaria presente como sócio e no conselho. Ou seja, a cartilha da boa governança sendo seguido à risca.
Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades
Sergio tem a grande oportunidade de criar um império do mercado editorial. Traça um plano extremamente ambicioso para competir em um mercado que se tornou volátil e incerto com a crise de vendas de livros físicos e a ascensão da Amazon mundialmente.
Construiu imensos templos da leitura em quase todos os estados do Brasil, um catálogo de 9 milhões de livros, espaços para teatro e artes, cafés e restaurantes, assim como se aventurou pelo mundo da tecnologia para competir no ramo de e-commerce, e-books e e-readers. Decolou muito alto em um curto período de tempo. Porém, muitos empreendimentos não vingaram e a empresa começou a passar por problemas financeiros.
Quem tem mais influência?
A máxima diz que cada empresa familiar é única mas o ego, poder e dinheiro regem qualquer companhia. E alguns fatores podem exercer maior influência na tomada de decisão.
Pedro Herz
À época estava como presidente do conselho de administração e assistiu às tomadas de decisão de seus filhos, da gestão profissional e de sócios externos à família. Não teve forças para pregar cautela em um plano de expansão tão arriscado. Em entrevista ao Estadão em 2014, ao ser questionado sobre como empreender em um país em crise, alertou:
“Não basta decolar, tem que voar. Senão, cai. Está faltando pé no chão aos empreendedores”.
Analisando hoje, me dá a impressão de que Pedro Herz estava fazendo uma autocrítica pelas últimas realizações da empresa:
“Não é saudável crescer subindo cinco degraus de uma vez e esquecer os outros quatro que você pulou. A chance de levar um escorregão é grande. Suba degrau por degrau.”
O fato é que Pedro Herz não obteve grande influência na condução da companhia após sua saída da direção executiva.
Sergio Herz
Como principal executivo da empresa, Sergio foi o responsável pelo plano de expansão. Em entrevista a revista GV Executivo, em 2017, define-se como um líder que não está em sua posição “para agradar às pessoas” e conta que o pai o considera “incendiário”.
De fato, relatos públicos de funcionários retratam que os executivos da família não eram muito amistosos com seus comandados causando um clima hostil principalmente com o time de vendas. No dia-a-dia, Sergio tinha uma missão difícil nas mãos com a migração da gestão familiar para a profissional. Na entrevista, ele declara que:
“O mais difícil não é profissionalizar, mas achar a pessoa certa. Contratei muitas pessoas pelo perfil técnico. Foi meu maior erro. Você pode trazer alguém extremamente competente, mas se não tiver o DNA da empresa não vai dar certo.”
Apesar das dificuldades na montagem da gestão profissional, Sergio seguiu firme com seus projetos de expansão.
Fabio Herz
O irmão de Sergio foi diretor executivo em diversas áreas da companhia, inclusive no cargo de diretor financeiro da empresa, como principal responsável pela gestão estratégica das finanças, inclusive com relatórios de previsões sobre saúde financeira da companhia.
Em tese, é quem dá o aval para os projetos de novos empreendimentos da empresa de acordo com a sua capacidade de assumir os riscos financeiramente. Ao longo dos anos, enquanto diretor financeiro, deu anuência ao projetos pleiteados.
Curioso que, ainda em 2008, em entrevista na Bienal do Livro, Fabio prevê, dez anos antes, o que iria acontecer com sua empresa ao citar, despretensiosamente, uma frase de Thomas Hobbes - “O homem é o lobo do homem”. Segundo Hobbes, o homem é capaz de colocar em risco a sua própria espécie. Por instintos de autopreservação e egoísmo, o ser humano tenderia a entrar em conflitos e guerras que ameaçariam os seus próprios irmãos. De acordo com o filósofo inglês:
“Como tendência geral de todos os homens, há um perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder, que cessa apenas com a morte.”
Em publicação anônima, um funcionário da empresa relata que, em 2017, estava em um elevador com o Pedro, Sergio e Fabio Herz quando após breve discussão sobre a saúde financeira da companhia, o pai diz, em tom irritado:
“Vocês dois já f*deram com a minha empresa, agora querem f*der com a minha revista?”
Um ano depois, a Livraria Cultura entrou com um pedido de recuperação judicial.
Epílogo
No fim da vida, Pedro assistiu ao declínio do negócio, que ele criou e cultivou muito de perto. Todas as unidades da livraria da família Herz foram sendo fechadas gradativamente até a última unidade do Conjunto Nacional há 2 meses, restando a plataforma virtual. O fechamento da loja ocorreu duas semanas após a morte de Pedro Herz, aos 83 anos.
“Muito embora as maiores causas deste capítulo final devam-se mais a questões internas da própria Cultura do que ao mercado como um todo, é fundamental que cada profissional olhe para suas práticas e decisões e aja em favor do fortalecimento da cadeia produtiva para cuidar das livrarias que estão aí agora, ativas e zelosas de suas obrigações e funções, sem artifícios e tratando o livro como coração do negócio." Gerson Ramos, Diretor comercial da Editora Planeta
“Nós assistimos a uma sequência enorme de decisões equivocadas: empréstimos e investimentos maiores do que o livro permite fazer, a abertura de lojas de tamanhos e em locais questionáveis, a comercialização exagerada de espaços para a exposição de produtos” Alexandre Martins Fontes, Proprietário da Livraria Martins Fontes
A empresa, ainda liderada pelo filho Sergio Herz segue em processo de falência, com passagens marcantes que maculam o passado de sucesso.
Pós-créditos
O que seria o fim de uma história, temos o indício do ressurgimento da companhia nas ruas da cidade de São Paulo. A própria empresa divulgou em suas redes de que uma nova unidade será instalada em um casarão tombado de 505 m² no bairro de Higienópolis.
Vale trazer novamente o conselho do fundador da Livraria Cultura, para o empreendedor brasileiro:
“A empresa tem que ter um crescimento saudável, subindo degrau por degrau, não dar um passo maior que a perna, não se endividar. Não é pecado subir degrau por degrau.”